Erudição e secularização das paixões

A nossa cultura de muitas maneiras trata o erudito sempre por baixo. O esforço levado a cabo pelos amantes malditos, cuja paixão emana senão o gosto pela beleza, costuma ser reprimido desde cedo nos espíritos fecundos.

No sentido daquilo que pode ser observado em nossos dias, existe uma compreensão pueril e comum de que o homem teria superado a sua característica milenar de contemplação pelas coisas belas do mundo, e, portanto, transcendido a si mesmo com vistas à consecução das paixões.

Mais do que triste, fico revoltado, à maneira de um Hamlet, e tento, com o uso de todos os procedimentos possíveis, denunciar por meio desta página essa fantasia nociva que há tempos têm limitado a ação empreendida pelos arautos da sensibilidade.

Mostrou-nos o grande bardo inglês, William Shakespeare, que no princípio era o silêncio. Eis que então, o príncipe da Dinamarca nos revelou, com imensa clareza, a condição do homem em face de uma vida desprovida de sentido: ler o Hamlet é agonizante como carregar uma cruz. Seu pensamento é a consciência do cadafalso; sua morte o signo da vida como finitude necessária.

“Deus te deu uma cara e você fez outra”.

Chegamos tarde à festa? Não, amigos. O reino da Dinamarca está em sono profundo e só os idiotas não julgam o quadro pela aparência — eis a maneira pela qual o Édipo de Sófocles desvenda a esfinge.

A obra do gênio grego nos leva às tensões e às afinidades eletivas que enredam duas vertentes: a verdade obtida por meio da razão e aquela outra cujo alcance é dado pela revelação. O Rei Édipo desnuda o mistério racionalmente ao perceber que o mal é o espelho refletido na luz do nada, afinal, o cego Tirésias consegue “enxergar” aquilo que passa ao largo de sua obstinação soturna, por assim dizer.

Coisa não é outra”, assim diz o poeta. [1]

Refrigério e descanso: Platão e Pascal
“Instinto e razão, características de duas naturezas”.

O poeta francês Charles Baudelaire escreveu, em As flores do mal, que Blaise Pascal tinha um abismo que se movia com ele. De fato, os pensamentos de Pascal nos vem à mente como uma iminente queda rumo ao obscuro.

Tornaram-se anjos ou bestas os que viveram sob o julgo de suas invectivas? Embora fosse um religioso loquaz, o filósofo e matemático francês flertou abertamente com o vazio, por isso sua leitura é indispensável.

Revelando aptidão precoce para os estudos, sua postura frente ao mundo foi de imensa nobreza e magnanimidade. Para além das intrigas de ordem teológica entre os jesuítas e os dominicanos, o diretor de cinema italiano, Roberto Rossellini, ressuscitou a sua dignidade cadavérica com imensa ternura — um anjo reacionário dos céus, um desbravador de ilusões que apostou no corpo místico de Cristo.

Quantos reinos nos ignoram!

Sim, amigos, quantos reinos nos ignoram. A conquistas da vida que geram abundância e felicidade são coisas que por outro lado também podem gerar medo e preguiça. Quem tem os dentes mais fortes?

Na filosofia, por exemplo, há uma miríade de saídas para esse ruinoso estado de coisas. Não raro, podemos nos deparar com noções absolutamente matizadas na obra do bom e velho Platão, afinal de contas, seus ensinamentos prestam um duplo serviço ao pensamento ocidental:

A noção de que o alcance da verdade pode ser obtido pela admiração para além de conceitos que se deterioram é, em grande medida, o parapeito sobre o qual a maior parte dos pensadores modernos vão se apoiar. Por outro lado, a tentação de iluminar os espíritos humanos no seio da comunidade enquanto rei-filósofo, munido de autoridade universal, reverbera uma das frases do personagem Casca, na peça Júlio César, de William Shakespeare:

O escravo tem nas mãos o instrumento para dar fim ao seu cativeiro”.

Não deixa de ser curioso o fato de que Platão tenha sido vendido como escravo na tentativa de conceber a sociedade perfeita: Ora, seria o discípulo de Sócrates um idealista avant la lettre?

Sur la place chacun passe, chacun vient, chacun va; drôles de gens que ces gens-là!

Seguimos e percebemos que de algum tempo a essa parte se vem ouvindo repetidamente a mudança das estações. Na ópera Carmen, de Georges Bizet, todo mundo vai e todo mundo vem — assim palavras de vento sobrevoam os céus ao longo dos séculos enquanto a razão segue imperiosamente subjugando todas as nossas ações. O homem já não é mais homem e a mulher tampouco pode gozar de suas características mais elevadas. Eu, por minha fé, amigos, prefiro me retirar nas masmorras da consciência a enfrentar essa procissão de animais selvagens.

Cáspite!

Notas:
[1] O poeta ali referido se chama Flávio Viegas Amoreira.

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